segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Rebeka Indirimível II

Artista: Kago Shintaro
Rebeka Indirimível II

Conto do primeiro dia do mês de Natal

Ela finalmente arrumara um emprego que não se importava muito com seus cabelos ou suas marcas nos braços, ou seu moleton desproporcionalmente grande ou com os remédios controlados.
Não era porque ela queria, mas não era permitido viver eternamente do benefício do governo; contas não se pagam sozinhas e, se ela não come, o gato precisa ser alimentado. Rebeka gostaria de poupá-lo da degradante tarefa de caçar lagartixas, ou pior, ratos, e contrair alguma doença.

Depois da visita de Ira, Rebeka acalmou-se um pouco. Uma amiga veio visitá-la, prometeu colocar ordem à todas as coisas entulhadas  na quitinete ridiculamente pequena, abafada, empoeirada.

 No espelho, ela escrevera com esmalte: conhece-te a ti mesma. No outro extremo do quarto, pichou a palavra "silêncio" com spray dourado. Pois se palavras são prata, o silêncio é ouro. 
Procurava significados nas palavras, lendo os jornais em busca de trabalho, mas interpretava tudo como metáfora. Encontrou algo que não parecia piada com sua cara, com sua situação mais do que degradante.
Ofereceu-se à um laboratório químico como cobaia humana. O dinheiro era bom, havia seguro e plano de saúde; não lhe enchiam o saco e tudo o que ela precisava fazer era sobreviver. Nos intervalos, atendia cerca de sete ligações telefônicas por minuto, às vezes durante quatro a seis horas.
A ira cessou, pois qual mutilação poderia ser pior do que aquilo? Comer a comida do próprio gato? Cortar, tingir, comer o próprio cabelo? Roer as unhas até que os dedos sangrem com esmalte tóxico, e depois ter que cumprir a média de 244 caracteres digitados por minuto? "Era exemplo pra tomar medicamento, poderia um dia tomar o veneno"?

Chegou dezembro bem devagarzinho. Aquela época em que tudo é invadido por idosos obesos caucasianos vestidos convenientemente de vermelho, e renas com nariz de led, bonecos de neve mesmo onde não neva, e chaminés mesmo onde não há lareira. O festival do kistch.
Ou isso ou réplica em todos os materiais derivados de petróleo disponíveis no mercado, da suposta cena do nascimento do hebreu chamado Cristo, o Salvador. Exceto onde ela costumava morar antes, onde o presépio era de cera. Tradição com cheiro de mofo e cera.
Nada daquilo, no entanto, conseguia comover Rebeka, em seu estado catatônico.Talvez deveria experimentar comer um menino-jesus de cera pra se encher de espírito natalino.  Ou meter com as trocentas formas em plástico barato do Velho Noel. 
O velho e o menino, símbolos sustentos do natal; a fome e o sexo.

De volta ao seu revolto lar, checando as chagas deixadas pelos testes. Buracos como de vermes, de agulhas e medicamentos, algumas queimaduras de abrasivos, testes de maquiagens que ainda formigavam em seus olhos. Aquela porra não era ilegal? Deitou-se no chão e pôs-se a chorar, miserável de si, vazia de sonhos e expectativas, tentando juntar os pedaços daquilo que fora um dia, dois anos atrás na universidade, e o que era hoje, uma cobaia humana.
Ela sentiu-se reduzida aos cacos do vinil derrubado por Ira, em sua última visita. Ainda estava ali, acumulando poeira. Ela fingia que não via o disco quebrado. Ela ignorava os buracos em seus braços purgando um líquido escuro, sangue podre. Então ela imaginou uma multidão de vermes, saindo desses buracos, devorando sua carne, arrancando-a dos ossos. E todos eles tinham cabecinhas de menino-jesus de cera.
Rebeka se levantou, cambaleante. Pisou os fragmentos do disco que rasgaram-lhe os pés. Caiu novamente, e chorou, chorou alto, com tanta pena quanto desprezo de si mesma, viciada em nada, alucinando sozinha num quarto onde ninguém a ouviria gritar. 

O outdoor que impedia a luz solar de entrar de forma mais incisiva no quarto, trazia a imagem de um dos insuportáveis velhos de vermelho, carregando um bebê loirinho com auréola divina. O espírito do natal, beba, beba essa porra. Sempre essa porra. 

Rebeka olhou-o sem virar o rosto, sentiu uma fúria que faria o outdoor incendiar-se imediatamente.. Mas era o que estava acontecendo - curto circuito nos holofotes e a merda toda começou a pegar fogo, um espetáculo à parte naquele céu ocre de sete horas da noite. Rebeka riu-se, ainda sem se levantar, apertando a barriga com os braços. Gargalhou, era com aquilo que o natal se pareceria pra ela. 

Forte dor abdominal, Rebeka se contorceu como um rato no chão. 
E vomitou de todas as cores possíveis, entre comprimidos, leite e frango velho, a cabeça mastigada de um menino-jesus de cera. 

3 comentários:

Dan disse...

Seus contos são ótimos. Adorei.

Vanessa St. disse...

Obrigada, Dan.
Seu feedback é importante pra mim. Atualizarei em breve!

Ariela disse...

Conto perfeito!!!!!
Ah, o espírito de natal..... onde todo mundo deseja paz, dá comida aos pobres, gasta horrores em presentes, mas ei! pelo menos no natal tem emprego pra todo mundo!
Meu dia favorito no ano é o dia 26/12 ... porque aí falta um ano para a próxima hipocri$$$$$ia de natal!