sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Rebeka Indirimível III

Rebeka Indirimível III










artista: Audrey Kawasaki



Conto da primeira semana do ano quinze:
Reviro-retrocesso das cinzas: Nostalgia I



Logo nos primeiros dias do ano quinze, decidida a mudar, Rebeka tenta conciliar com seu passado e com os dizeres em suas muitas cicatrizes, avermelhadas pelo amanhecer de um calor insuportável. O calor lhe dava alergia, uma coceira que lhe fazia sangrar a pele com suas unhas não muito longas, mas afiadas. 
Deitada no chão pela primeira vez razoavelmente limpo, ela lia pedaços rasgados do que um dia fora um diário. Ela colecionara diários uma vez, não somente os seus, mas o de outras pessoas também. Quando ainda tinha muitos amigos,  era boas em guardar segredos. Alguns desses diários, segredos ela ganhava, outros tomava à força. 
Tentou certa vez escrever um diário conjunto com um de seus amantes. Não moravam juntos, mas viviam juntos. Comiam praticamente no mesmo prato. Trepavam três vezes ao dia. Cada vez mais pervertidos, dados à indescritíveis sadomasoquismos e fetiches de incesto; devido à proximidade, a intimidade que compartilhavam, o carinho, a devoção.
Aquele, quando se foi, tornou-se Nostalgia, e é assim que ela lhe chamava desde então. Houvera violência, violinos, vaga-lumes e vergonha. Mais marcas no espírito que na pele, a lembrança do gozo mais profundo fazia-a ficar úmida, encharcada, levar as mãos lá, ansiar por sentí-lo pulsando dentro dela. O calor, avidez, a insaciabilidade. Sempre mais, sempre que estavam sozinhos, o calor derretia os relógios.
O corpo nu de Nostalgia, eterno efebo de rosto e sorriso angelicais, era da cor de uma mistura de leite e mel, de uma proibição médica; coberto de uma penugem suave e ruiva, deixando sua pele ainda mais macia... Rebeka estava de novo com os dedos dentro, tentando conter a excitação crescente; mas não quero gozar ainda, não enquanto não tivesse sua memória satisfeita com aquelas lembranças... 
Os cachos perfumados do cabelo dele encontrando as juntas de seus dedos. Os dedos de violinista dele, tão hábeis, tão gelados. Suar crueldade infantil e aquela mania de desaparecer, de esconder o papel embaixo do tapete, o modo como divertia-se com as confusões que Rebeka arrumava. Sua alegria e sua raiva eram tão legítimas quanto sua ambição por poder e conhecimento. Suas carícias tão necessárias, como suas inexplicáveis demonstrações de completa indiferença eram indicadores de sua devoção cármica. Sua necessidade de mentir e destruir (todo um conceito por trás do fato de não ser capaz de possuir seu desejo em forma de mulher), ao mesmo tempo sua vontade de tê-la pra si e somente quando quisesse, sua capacidade de desistir sem nunca dizer adeus: Tudo isso era Nostalgia. Tão irresistível como veludo, que sufoca tanto quanto sua textura é prazerosa ao toque. Rebeka gastou um dia inteiro, ligando setenta vezes, e ele nunca atendia - ele estava lá; era o prazer em vê-la procurando por ele, para que ele pudesse desprezá-la; e então retornar a ligação semanas depois, preenchendo todas as lacunas de saudade. Ela, iludida, choramingava cada vez que gozava chamando o nome de Nostalgia... Era a memória encarnada - nunca planos para o futuro - que estava lá impregnada de suor, lágrimas e sangue (clichê, porque era tão real).
Lá pelas tantas, o estômago corroído pela fome, ela se lembra de cozinhar uma sopa para si. O sabor daquela era como a de uma, que certa vez ela fizera para comer junto com Nostalgia. Era esse seu efeito: rebobinar o presente, como que salpicado de memórias, com sabor de passado, impregnado de sentimentalismo; o incrível poder de distorção causado pelo apego às sensações e historinhas mentais, confundindo o que houve com o que nunca aconteceu fora da imaginação. Tudo fica com cor, gosto, cheiro e textura de lembrança revivida.

Com ele, Rebeka aprendeu a mentir pra si: seria o amor que Nostalgia lhe tinha, mera invenção de seu coração convencido a se manter fiel àquele amor profundo, devoto? Seria na verdade, nada mais que hábito, para ele? Rebeka obcecada, teria inventado que Nostalgia a amava assim tão intensamente, porque na verdade era ela quem amava por dois? Será que Nostalgia era assim para ela sua alma tão  gêmea porque ele era nada mais que um amigo imaginário? O ar fantasioso que ele assumia, ao contar seus feitos, era fruto do fato de ser uma dissoluta versão de Peter Pan? Os diários dos dois eram fábulas eróticas, romance de fantasia?
Rebeka cuidou dele enquanto pôde, para níveis muito além de toleráveis de dor emocional, que ela sempre soube, causara nele também. O dano só não era mais irreparável que a falta que ele lhe fazia, apesar de toda confusão. Castigava-se com um flagelo de correntes, ou com a própria corrente, uma metáfora para o indelével laço que compartilhou com Nostalgia por tantos anos, e ela sentia, ainda compartilhava. Sua presença sobrenatural na vida dela permanecia, como uma marca de Cain, e ele podia retornar e ir embora, incerto como os ventos regentes de seu signo.
Madrugada ardente de conciliação, que sempre a deixava toda em carne viva - correntes, fronteiras, promessas de amor não cumpridas. Antes mesmo de gozar, automasoquista, Rebeka abrira de volta as cicatrizes em feridas, com suas unhas, como se fossem as palavras e os beijos de Nostalgia. O choro copioso a sobrepujar os gemidos e gritos do prazer forçado: sua nítida memória da violação vingativa, contra seu corpo e seu espírito; catatônica agarrando-se à esperança de aquilo ser uma mentira, a mais suja e cruel jamais dita. Amor, ódio, amor.
Ela ainda espera uma resposta: gosta ou não gosta? Nostalgia.. O que você quer fazer?



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